Apresentação
DOI:
https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v0i27.185Resumo
O primeiro e decisivo pressuposto que sustenta a relevância e a urgência da ampliação e aprofundamento das pesquisas em torno do tema da interculturalidade no âmbito da educação decorre do fato de estarmos situados numa cidade, num estado e num país marcadamente multiculturais. Mato Grosso do Sul apresenta uma grande diversidade demográfica caracterizando múltiplos ethos culturais.
O processo de desenvolvimento permitiu a migração de brasileiros de diferentes regiões do país, atraiu estrangeiros que aqui encontraram uma vasta extensão de fronteira (Bolívia e Paraguai). Porém, aqui já estavam os povos indígenas, habitantes primeiros, que, apesar de sofrerem diretamente as consequências do desenvolvimento, foram e são, historicamente, desconsiderados na construção da identidade do Estado. Encontram-se, ainda, as comunidades negras e um grande número de assentamentos/acampamentos, todos situados, historicamente, à margem do processo de desenvolvimento implantado e que, por isso mesmo, junto às demais singularidades, têm exigido, de forma cada vez mais articulada, políticas e ações diferenciadas. E, para isso, impõem-se a necessidade de desconstruir preconceitos e estereótipos, ressignificar conteúdos em busca de uma educação emancipadora, que remete a uma pedagogia intercultural.
Não se tem números exatos sobre populações que se sentem inseridas nas diversas categorias acima, mas, Campo Grande é a única cidade a se “orgulhar” de suas “aldeias urbanas” – Marçal de Souza1 e Darcy Ribeiro, essa última inaugurada, em 2007, e, ainda, uma terceira já anunciada pela Prefeitura2. Cada um desses segmentos que compõem, hoje, a população regional desenvolveu e desenvolve, certamente, formas específicas de territorialização, com leituras de mundo, traduções e negociações que seguem definindo e redefinindo suas identidades perante os diversos outros. São processos complexos que, embora estejam na raiz da construção de “fracassos escolares”, seguem, em muitos casos, ignorados por professores e gestores da educação escolar.
Talvez em consideração ao histórico trabalho já desenvolvido pela UCDB com os povos indígenas no Estado de Mato Grosso do Sul, o Programa de Mestrado em Educação da UCDB cedo começou a receber projetos de pesquisa direcionados ao tema da pluralidade cultural, ou, se quisermos, do multiculturalismo e da interculturalidade. Dessa forma, no período de 1996 a 2003, um total de 11 projetos de pesquisa voltados para essa temática foram desenvolvidos e se traduziram em dissertações concluídas no Programa de Mestrado em Educação, na UCDB.
São trabalhos nos quais ressaltam questões relacionadas a gênero, identidade, raça e com forte predominância da questão étnica, em especial a indígena. Em 2003, ingressaram três projetos relacionados à temática étnica.
Deve-se, certamente, ao contexto regional acima e às demandas de projetos de pesquisa verificadas que levaram a CAPES, após a avaliação do Programa de Mestrado, no período de 2001/2003, a recomendar a instituição formal de mais uma Linha de Pesquisa que acabou tomando a formulação seguinte: Diversidade Cultural e Educação Indígena, incluída no Edital para seleção de 2004.
Na primeira chamada após a definição dessa nova Linha de Pesquisa, ingressaram quatro candidatos que, junto com os três mestrandos que migraram de outras linhas de pesquisa, somaram, no primeiro ano de instalação, um total de sete mestrandos sob a orientação de três professores. Na segunda chamada, oito candidatos foram selecionados, com projetos contemplando a cultura negra, a cultura indígena e a arte – educação, somando, em dois anos, um total de 15 mestrandos atendidos pela Linha.
De 2005 até a presente data, foram concluídas e defendidas no âmbito da referida Linha de Pesquisa do Programa de Mestrado em Educação, o total de 26 dissertações, todas versando sobre temas diretamente relacionados à situação e ou contextos nos quais a marcação das diferenças étnicas, religiosas, sexuais, raciais, entre outras, ocupavam e ocupam lugar de relevância, dialogando todas com referenciais teóricos relacionados à centralidade da cultura e/ou discussão de processos de interculturalidade.
É o que confirma um rápido olhar sobre as dissertações concluídas nesse período: - em 2005 foi defendida a dissertação intitulada A luta por uma escola indígena em Te’ Yikue, Caarapó/MS, abordando, especificamente, uma experiência concreta de educação escolar conduzida por professores indígenas nessa aldeia indígena. Em 2006, outras três dissertações foram concluídas, todas dialogando com a temática da educação escolar indígena. São elas: A prática do professor guarani/kaiowá: o ensino de ciências a partir do projeto Ara Verá.; Classes de idade xavante e a educação escolar: uma contribuição pedagógica e Referencial curricular nacional para escolas indígenas: cultura e conhecimento no ensino de história.
Em 2007, outras nove dissertações foram concluídas no âmbito da Linha Diversidade Cultural e Educação Indígena. São elas: Percepção dos adultos terena sobre a socialização das crianças de 0 a 6 anos da Aldeia Tereré de Sidrolândia - MS.; A educação física escolar na escola municipal indígena “Marcolino Lili”: uma possibilidade de fortalecimento étnico; Representações sobre meio ambiente, dos professores terena que atuam de 1ª a 4ª séries, na Aldeia Bananal, Distrito de Taunay, município de Aquidauana, em Mato Grosso do Sul; A construção do sentido da escola para os estudantes indígenas do ensino médio da reserva Francisco Horta Barbosa – Dourados/MS; A escola indígena municipal Utapinopona - Tuyuka e a construção da identidade Tuyuca; Cultura regional e o ensino da arte: caminho para uma prática intercultural? estudo de caso: e. m. Sulivan Silvestre Oliveira – tumune kalivono “criança do futuro”. Além da temática indígena, porém sempre com o mesmo referencial teórico, seguem novas pesquisas sobre a questão racial, o ensino da história da África e a arte na educação. São elas: A inserção da temática racial nas séries iniciais do ensino fundamental em uma escola da rede pública municipal de Campo Grande; O ensino da história da África e a atualidade da questão na escola: entre a existência da lei n. 10. 639/03 e o fazer pedagógico do educador), e A questão da arte - Uniarte: despertando novos olhares e Arte-educação; interculturalidade; identidade e diferença.
Em 2008, outras 5 dissertações são concluídas, três sobre a temática indígena, sendo que, dessas, duas sobre um tema que, crescentemente, vem adquirindo relevância nos estudos sobre educação indígena – a criança indígena. São elas: O que interessa saber de índio?”: um estudo a partir das manifestações de alunos de escolas de Campo Grande sobre as populações indígenas do Mato Grosso do Sul; A pedagogia terena e a criança do PIN Nioaque: as relações entre família, comunidade e escola; e ‘Watébrémi‘ xavante: uma aproximação ao mundo da criança indígena. Duas dissertações, concluídas nesse ano, referem-se a pesquisas envolvendo os professores durante o regime militar e a questão racial na escola. São elas: A construção da identidade cultural do professor durante o regime militar – no Brasil 1964 a 1985 e A discussão racial na escola e grupo afro-rica: uma articulação possível? Em 2009, oito dissertações já foram concluídas até esse momento, sendo que, dessas, duas dizem respeito, novamente, à criança indígena. São elas: Pedagogia Kadiwéu e a formação da criança – olhares de mulheres adultas e A criança Terena: o diálogo entre a educação indígena e a educação escolar na aldeia Buriti. Há, ainda, duas outras dissertações sobre educação escolar indígena: O ensino diferenciado na Escola Indígena “Tengatui Marangatu” e Educação escolar indígena na aldeia Bananal: prática e utopia? E três abordando questões relativas à interculturalidade em outras realidades escolares. São elas: O professor de letras: uma análise a partir da perspectiva intercultural; A formação do pedagogo: uma formação intercultural? e Educação e gênero: a re-significação da masculinidade”.
Tendo como referência estas realidades locais, todas elas articuladas com a realidade nacional e global, o Programa de Mestrado da UCDB, por meio da Linha de Pesquisa: Diversidade Cultural e Educação Indígena, organiza este Dossiê: Educação e Interculturalidade: mediações conceituais teóricas e empíricas, com o objetivo de abrir um espaço para o diálogo entre vários interlocutores que, de lugares diferentes e em momentos diferentes, trazem as suas contribuições através de narrativas cruzadas entre a empiria vivida e ressignificada e a teoria elaborada e reelaborada, tendo como horizonte as possibilidades de mediação produzidas pela interculturalidade entre diferentes sujeitos e/ou entre diferentes contextos culturais. Os textos aqui apresentados, resguardadas as suas singularidades e direção, conduzem-se pelo reconhecimento e respeito ao direito à diferença e pelo rompimento com a visão essencialista na compreensão das culturas e dos processos de construção das identidades.
Pautam-se, ainda, numa perspectiva do pós-colonialismo, por buscar compreender os desafios epistemológicos que os processos hibridizados e polissêmicos colocam em cena, através de novos atores, novas imagens e novos discursos. Atores, imagens e discursos que sempre existiram, mas que as leituras polarizadas não permitiam ou permitem, muitas vezes, “mostrar como a dominação e a subalternidade se misturam e se confundem, formando uma teia enredada de inter-relações baseadas em questões de classe, raça, gênero, orientação sexual, `habilidade`, religião, língua e afiliações locais, nacionais e globais”, como propõem os autores BURAS, Kristen L. e APPLE, Michael W. na apresentação do livro – Currículo, Poder e Lutas educacionais: com a palavra, os subalternos – cuja resenha, realizada por Simone Figueiredo Cruz, integra este Dossiê.
Na sessão Ponto de Vista, o autor Reinaldo Matias Fleuri (UFSC), nos apresenta “Desafios epistemológicos emergentes na relação intercultural”, texto elaborado “a partir de um diálogo com intelectuais orgânicos Kaiowá-Guarani, Mbyá Guarani, Boe-Bororo e Terena (Brasil)”, através do qual “busca-se entender os limiares epistemológicos da relação intercultural dos povos nativos e a sociedade brasileira”. Segundo o autor, são “campos profundamente conflituosos, que sustentam processos de interações interculturais paradoxais e geralmente trágicos”. O texto traz, ainda, como contribuição teórica, “o desafio ‘dialógico’ de se compreender a diversidade de lógicas constituídas pelas diferentes culturas de modo que suas diferenças, na relação, não sejam anuladas, mas constituam campos de ambivalências potencializadores de saltos lógicos que tornem possível a compreensão dos paradoxos e o enfrentamento das situações-limites interculturais”.
Abrindo a sessão de artigos, José Licínio Backes (UCDB), com “O lugar da cultura no Gt de educação popular da ANPEd: uma análise pautada nos Estudos Culturais”, provoca uma reflexão, a partir dos textos apresentados no GT, no período de 2002 a 2006, tendo como suporte o “questionamento das dicotomias (principalmente a de alta cultura e baixa cultura)” e observando que “a cultura é uma categoria epistemológica [...], entendendo a cultura como atribuição e produção de sentido”. Conclui o autor que apesar de a cultura ser uma constante em todos os textos analisados “esta continua ocupando o lugar de uma categoria menos importante do que a categoria de classe na grande maioria dos trabalhos”.
A antropóloga Marilin Rehnfeldt (Universidad Católica Nuestra Señora de La Asunción e directora General de Educación Escolar Indígena Del Ministério de Educación y Cultura de Paraguay) com o texto “A Educação Intercultural Bilíngue (EIB) no Paraguai”, relata as experiências de educação intercultural bilíngue entre os povos indígenas do Paraguai nos últimos anos, norteadas por três dimensões: a linguística, a cultural e a pedagógica. Garantida a multietnicidade e pluriculturalidade, conforme sua Constituição Nacional, o Paraguai “desde 2003 el MEC se propone implementar en las escuelas indígenas propuestas pedagógicas diferenciadas, bilingües e interculturales, con el fin de mejorar el aprendizaje, fortalecer la cultura tradicional indígena y sus identidades étnicas, favoreciendo la participación de las comunidades indígenas en todo el proceso”.
Na sequência, temos o texto “Hacia la reinvención de la educación intercultural bilingüe en Guatemala”, artigo de Luis Enrique López (Programa de Apoyo a la Calidad Educativa, Cooperación Técnica Alemana – GTZ), que problematiza o conceito de qualidade educativa na Guatemala, tendo como referência o projeto de educação bilíngue (sistemas linguísticos maia e castelhano), implantado no país há 30 anos. Segundo o autor, fatores como mudanças nos sistemas linguísticos e maior inserção política de indígenas “obligan tanto al Estado como a la sociedad civil guatemalteca a reinventar la EBI (educación intercultural bilingüe)”. O texto propõe, ainda, medida que “estaría además contribuyendo al mejoramiento de la educación nacional, en general, así como a la resignificación del concepto de calidad educativa, que en el país ha priorizado los factores de eficiencia y eficacia por sobre los de relevancia social y pertinencia cultural y lingüística necesarias para una mayor democratización de la sociedad”.
Apoiada nas concepções de pedagogia culturalmente relevante e de professor intermulticultural, Emília Freitas de Lima (UFSCar) participa deste dossié com o artigo “Apontamentos sobre ensino e formação de professores intermulticulturais”, destacando a importância da metodologia de ensino e da sensibilidade na formação deste profissional. Sônia Regina de Souza Fernandes (UNISINOS), em coautoria com Carlinda Leite (Universidade do Porto), com o artigo “Políticas educativas e curriculares portuguesas e o prometo político pedagógico da Escola da Ponte: reflexões e Apontamentos”, relatam a experiência vivida em um período de estágio na Escola da Ponte, em Portugal, evidenciando que a “Escola da Ponte encontra-se nesta dimensão de mudanças curriculares realmente significativas, o que supõe, quase sempre, mudanças quanto aos métodos e formas de trabalhar”, questões essas relevantes para problematizar o sentido da escola, também, no contexto brasileiro. Fechando o dossiê, encontramos dois textos que têm a temática indígena como foco da atenção das autoras: Iara Tatiana Bonin (ULBRA), com “Cenas da vida indígena na Literatura que chega às escolas”, se propõe a analisar obras de literatura infantil e infanto-juvenil que chegam às escolas e que abordam a temática indígena, tendo como objetivo “indagar sobre as relações de poder que produzem e posicionam sujeitos indígenas e não indígenas” nos textos estudados, tendo como aportes teóricos autores como Hall, Bhabha e Foucault; Maria Aparecida de Souza Perrelli (UCDB), em “A ‘ciência’ na visão de alunos indígenas: um estudo visando à construção de contextos de relações interculturais” traz as reflexões elaboradas a partir da experiência vivida como professora de ciências naturais em um curso de formação de professores indígenas kaiowá e guarani. Com o objetivo de “conhecer as concepções de ciências dos alunos”, Perrelli realiza uma pesquisa cujos dados produzidos sugerem a necessidade de releituras do conceito de ciência “que, de uma parte, contemplem uma visão de ciência mais abrangente e inclusiva […] e, de outra parte, deverá buscar a ‘ciência do índio’, sua epistemologia, metodologias, linguagens, impactos sociais, os processos históricos que a tornou, aos olhos do ocidente, um saber subalterno, um não-saber, um não-conhecimento, uma não-ciência”.
Ao organizar o Dossiê Educação e Interculturalidade: mediações conceituais e empíricas, a Linha de Pesquisa Diversidade Cultural e Educação Indígena espera contribuir no sentido de provocar discussões que atentem para a complexidade de questões quase sempre abordadas teórica e empiricamente de forma periférica, na lógica da monocultura e das polaridades que ocultam o potencial da polissemia, da ambivalência, das múltiplas possibilidades de construção/produção de sentidos e, com isso, sugerir alternativas através de incessante processo de construção, sempre aberto e, dessa forma, consolidar espaços educativos em uma perspectiva intercultural.
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