Apresentação

Autores

  • Adir Casaro Nascimento UCDB
  • Antonio Jacó Brand

DOI:

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v0i27.185

Resumo

O primeiro e decisivo pressuposto que sustenta a relevância e a urgência da amplia­ção e aprofundamento das pesquisas em torno do tema da interculturalidade no âmbito da educação decorre do fato de estarmos situados numa cidade, num estado e num país marcadamente multiculturais. Mato Grosso do Sul apresenta uma grande ­diversidade demográfica caracterizando múltiplos ethos culturais.

O processo de desenvolvimento permitiu a migração de brasileiros de diferentes regiões do país, atraiu estrangeiros que aqui encontraram uma vasta extensão de fronteira (Bolívia e Paraguai). Porém, aqui já estavam os povos indígenas, habitantes ­primeiros, que, apesar de sofrerem diretamente as consequências do desenvolvimento, foram e são, historicamente, desconsiderados na construção da identidade do Estado. Encontram-se, ainda, as comunidades negras e um grande número de assentamentos/acampamentos, todos situados, historicamente, à margem do processo de desenvolvimento implantado e que, por isso mesmo, junto às demais singularidades, têm exigido, de forma cada vez mais articulada, políticas e ações diferenciadas. E, para isso, impõem-se a necessidade de desconstruir preconceitos e estereótipos, ressignificar conteúdos em busca de uma educação emancipadora, que remete a uma pedagogia intercultural.

Não se tem números exatos sobre populações que se sentem inseridas nas diversas categorias acima, mas, Campo Grande é a única cidade a se “orgulhar” de suas “aldeias urbanas” – Marçal de Souza1 e Darcy Ribeiro, essa última inaugurada, em 2007, e, ainda, uma terceira já anunciada pela Prefeitura2. Cada um desses segmentos que compõem, hoje, a população regional desenvolveu e desenvolve, certamente, formas específicas de territorialização, com leituras de mundo, traduções e negociações que seguem definindo e redefinindo suas identidades perante os diversos outros. São processos complexos que, embora estejam na raiz da construção de “fracassos escolares”, seguem, em muitos casos, ignorados por professores e gestores da educação escolar.

Talvez em consideração ao histórico trabalho já desenvolvido pela UCDB com os povos indígenas no Estado de Mato Grosso do Sul, o Programa de Mestrado em ­Educação da UCDB cedo começou a receber projetos de pesquisa direcionados ao tema da pluralidade cultural, ou, se quisermos, do multiculturalismo e da interculturalidade. Dessa forma, no período de 1996 a 2003, um total de 11 projetos de pesquisa voltados para essa temática foram desenvolvidos e se traduziram em dissertações concluídas no Progra­ma de Mestrado em Educação, na UCDB.

São trabalhos nos quais ressaltam questões relacionadas a gênero, identidade, raça e com forte predominância da questão étnica, em especial a indígena. Em 2003, ingressaram três projetos relacionados à temática étnica.

Deve-se, certamente, ao contexto regional acima e às demandas de projetos de pesquisa verificadas que levaram a CAPES, após a avaliação do Programa de Mestrado, no período de 2001/2003, a recomendar a instituição formal de mais uma Linha de Pesquisa que acabou tomando a formulação seguinte: Diversidade Cultural e Educação Indígena, incluída no Edital para seleção de 2004.

Na primeira chamada após a definição dessa nova Linha de Pesquisa, ­ingressaram quatro candidatos que, junto com os três mestrandos que migraram de outras linhas de pesquisa, somaram, no primeiro ano de instalação, um total de sete mestrandos sob a orientação de três professores. Na segunda chamada, oito candidatos foram ­selecionados, com projetos contemplando a cultura negra, a cultura indígena e a arte – educação, somando, em dois anos, um total de 15 mestrandos atendidos pela Linha.

De 2005 até a presente data, foram concluídas e defendidas no âmbito da referida Linha de Pesquisa do Programa de Mestrado em Educação, o total de 26 dissertações, todas versando sobre temas diretamente relacionados à situação e ou contextos nos quais a marcação das diferenças étnicas, religiosas, sexuais, raciais, entre outras, ocupavam e ocupam lugar de relevância, dialogando todas com referenciais teóricos relacionados à centralidade da cultura e/ou discussão de processos de interculturalidade.

É o que confirma um rápido olhar sobre as dissertações concluídas nesse período: - em 2005 foi defendida a dissertação intitulada A luta por uma escola indígena em Te’ Yikue, Caarapó/MS, abordando, especificamente, uma experiência concreta de educação escolar conduzida por professores indígenas nessa aldeia indígena. Em 2006, outras três dissertações foram concluídas, todas dialogando com a temática da ­educação escolar indígena. São elas: A prática do professor guarani/kaiowá: o ensino de ciências a partir do projeto Ara Verá.; Classes de idade xavante e a educação escolar: uma ­contribuição pedagógica e Referencial curricular nacional para escolas indígenas: cultura e conhecimento no ensino de história.

Em 2007, outras nove dissertações foram concluídas no âmbito da Linha Diversidade Cultural e Educação Indígena. São elas: Percepção dos adultos terena sobre a socialização das crianças de 0 a 6 anos da Aldeia Tereré de Sidrolândia - MS.; A educação física escolar na escola municipal indígena “Marcolino Lili”: uma possibilidade de fortalecimento étnico; Representações sobre meio ambiente, dos professores terena que atuam de 1ª a 4ª séries, na Aldeia Bananal, Distrito de Taunay, município de Aquidauana, em Mato Grosso do Sul; A construção do sentido da escola para os estudantes indígenas do ensino médio da reserva Francisco Horta Barbosa – Dourados/MS; A escola indígena municipal Utapinopona - Tuyuka e a construção da identidade Tuyuca; Cultura regional e o ensino da arte: caminho para uma prática intercultural? estudo de caso: e. m. Sulivan Silvestre Oliveira – tumune kalivono “criança do futuro”. Além da temática indígena, porém sempre com o mesmo referencial teórico, seguem novas pesquisas sobre a questão racial, o ensino da história da África e a arte na educação. São elas: A inserção da temática racial nas séries iniciais do ensino fundamental em uma escola da rede pública municipal de Campo Grande; O ensino da história da África e a atualidade da questão na escola: entre a existência da lei n. 10. 639/03 e o fazer pedagógico do educador), e A questão da arte - Uniarte: despertando novos olhares e Arte-educação; interculturalidade; identidade e diferença.

Em 2008, outras 5 dissertações são concluídas, três sobre a temática indígena, sendo que, dessas, duas sobre um tema que, crescentemente, vem adquirindo relevância nos estudos sobre educação indígena – a criança indígena. São elas: O que interessa saber de índio?”: um estudo a partir das manifestações de alunos de escolas de Campo Grande sobre as populações indígenas do Mato Grosso do Sul; A pedagogia terena e a criança do PIN Nioaque: as relações entre família, comunidade e escola; e ‘Watébrémi‘ xavante: uma aproximação ao mundo da criança indígena. Duas dissertações, ­concluídas nesse ano, referem-se a pesquisas envolvendo os professores durante o regime militar e a questão racial na escola. São elas: A construção da identidade cultural do professor durante o regime militar – no Brasil 1964 a 1985 e A discussão racial na escola e grupo afro-rica: uma articulação possível? Em 2009, oito dissertações já foram concluídas até esse momento, sendo que, dessas, duas dizem respeito, novamente, à criança indígena. São elas: Pedagogia Kadiwéu e a formação da criança – olhares de mulheres adultas e A criança Terena: o diálogo entre a educação indígena e a educação escolar na aldeia Buriti. Há, ainda, duas outras dissertações sobre educação escolar indígena: O ensino diferenciado na Escola Indígena “Tengatui Marangatu” e Educação escolar indígena na aldeia Bananal: prática e utopia? E três abordando questões relativas à interculturalidade em outras realidades escolares. São elas: O professor de letras: uma análise a partir da perspectiva intercultural; A formação do pedagogo: uma formação intercultural? e ­Educação e gênero: a re-significação da masculinidade”.

Tendo como referência estas realidades locais, todas elas articuladas com a realidade nacional e global, o Programa de Mestrado da UCDB, por meio da Linha de Pesqui­sa: Diversidade Cultural e Educação Indígena, organiza este Dossiê: Educação e Interculturalidade: mediações conceituais teóricas e empíricas, com o objetivo de abrir um espaço para o diálogo entre vários interlocutores que, de lugares diferentes e em momentos diferentes, trazem as suas contribuições através de narrativas cruzadas entre a empiria vivida e ressignificada e a teoria elaborada e reelaborada, tendo como horizonte as possibilidades de mediação produzidas pela interculturalidade entre diferentes sujeitos e/ou entre diferentes contextos culturais. Os textos aqui apresentados, resguardadas as suas singularidades e direção, conduzem-se pelo reconhecimento e ­respeito ao direito à diferença e pelo rompimento com a visão essencialista na compreensão das culturas e dos processos de construção das identidades.

Pautam-se, ainda, numa perspectiva do pós-colonialismo, por buscar compreender os desafios epistemológicos que os processos hibridizados e polissêmicos colocam em cena, através de novos atores, novas imagens e novos discursos. Atores, imagens e discursos que sempre existiram, mas que as leituras polarizadas não permitiam ou ­permitem, muitas vezes, “mostrar como a dominação e a subalternidade se misturam e se confundem, formando uma teia enredada de inter-relações baseadas em questões de classe, raça, gênero, orientação sexual, `habilidade`, religião, língua e afiliações locais, nacionais e globais”, como propõem os autores BURAS, Kristen L. e APPLE, Michael W. na apresentação do livro – Currículo, Poder e Lutas educacionais: com a palavra, os subalternos – cuja resenha, realizada por Simone Figueiredo Cruz, integra este Dossiê.

Na sessão Ponto de Vista, o autor Reinaldo Matias Fleuri (UFSC), nos apresenta “Desafios epistemológicos emergentes na relação intercultural”, texto elaborado “a partir de um diálogo com intelectuais orgânicos Kaiowá-Guarani, Mbyá Guarani, Boe-Bororo e Terena (Brasil)”, através do qual “busca-se entender os limiares epistemológicos da ­relação intercultural dos povos nativos e a sociedade brasileira”. Segundo o autor, são “campos profundamente conflituosos, que sustentam processos de interações interculturais paradoxais e geralmente trágicos”. O texto traz, ainda, como contribuição teórica, “o desafio ‘dialógico’ de se compreender a diversidade de lógicas constituídas pelas diferentes culturas de modo que suas diferenças, na relação, não sejam anuladas, mas constituam campos de ambivalências potencializadores de saltos lógicos que tornem possível a compreen­são dos paradoxos e o enfrentamento das situações-limites interculturais”.

Abrindo a sessão de artigos, José Licínio Backes (UCDB), com “O lugar da cultura no Gt de educação popular da ANPEd: uma análise pautada nos Estudos Culturais”, provoca uma reflexão, a partir dos textos apresentados no GT, no período de 2002 a 2006, tendo como suporte o “questionamento das dicotomias (principalmente a de alta cultura e baixa cultura)” e observando que “a cultura é uma categoria epistemológica [...], entendendo a cultura como atribuição e produção de sentido”. Conclui o autor que apesar de a cultura ser uma constante em todos os textos analisados “esta continua ­ocupando o lugar de uma categoria menos importante do que a categoria de classe na grande maioria dos trabalhos”.

A antropóloga Marilin Rehnfeldt (Universidad Católica Nuestra Señora de La Asunción e directora General de Educación Escolar Indígena Del Ministério de Educación y Cultura de Paraguay) com o texto “A Educação Intercultural Bilíngue (EIB) no Paraguai”, relata as experiências de educação intercultural bilíngue entre os povos indígenas do Paraguai nos últimos anos, norteadas por três dimensões: a linguística, a cultural e a pedagógica. Garantida a multietnicidade e pluriculturalidade, conforme sua Constituição Nacional, o Paraguai “desde 2003 el MEC se propone implementar en las escuelas indígenas propuestas pedagógicas diferenciadas, bilingües e interculturales, con el fin de mejorar el aprendizaje, fortalecer la cultura tradicional indígena y sus identidades étnicas, favoreciendo la participación de las comunidades indígenas en todo el proceso”.

Na sequência, temos o texto “Hacia la reinvención de la educación intercultural bilingüe en Guatemala”, artigo de Luis Enrique López (Programa de Apoyo a la Calidad Educativa, Cooperación Técnica Alemana – GTZ), que problematiza o conceito de ­qualidade educativa na Guatemala, tendo como referência o projeto de educação bilíngue (­sistemas linguísticos maia e castelhano), implantado no país há 30 anos. Segundo o autor, fatores como mudanças nos sistemas linguísticos e maior inserção política de indígenas “obligan tanto al Estado como a la sociedad civil guatemalteca a reinventar la EBI (educación intercultural bilingüe)”. O texto propõe, ainda, medida que “estaría además contribuyendo al mejoramiento de la educación nacional, en general, así como a la resignificación del concepto de calidad educativa, que en el país ha priorizado los factores de eficiencia y eficacia por sobre los de relevancia social y pertinencia cultural y lingüística necesarias para una mayor democratización de la sociedad”.

Apoiada nas concepções de pedagogia culturalmente relevante e de professor intermulticultural, Emília Freitas de Lima (UFSCar) participa deste dossié com o artigo “Apontamentos sobre ensino e formação de professores intermulticulturais”, destacando a importância da metodologia de ensino e da sensibilidade na formação deste ­profissional. Sônia Regina de Souza Fernandes (UNISINOS), em coautoria com Carlinda Leite (Universidade do Porto), com o artigo “Políticas educativas e curriculares portuguesas e o prometo político pedagógico da Escola da Ponte: reflexões e Apontamentos”, relatam a expe­riência vivida em um período de estágio na Escola da Ponte, em Portugal, evidenciando que a “Escola da Ponte encontra-se nesta dimensão de mudanças curriculares realmente significativas, o que supõe, quase sempre, mudanças quanto aos métodos e formas de trabalhar”, questões essas relevantes para problematizar o sentido da escola, também, no contexto brasileiro. Fechando o dossiê, encontramos dois textos que têm a temática indígena como foco da atenção das autoras: Iara Tatiana Bonin (ULBRA), com “Cenas da vida indígena na Literatura que chega às escolas”, se propõe a analisar obras de ­literatura infantil e infanto-juvenil que chegam às escolas e que abordam a temática indígena, tendo como objetivo “indagar sobre as relações de poder que produzem e posicionam sujeitos indígenas e não indígenas” nos textos estudados, tendo como aportes teóricos autores como Hall, Bhabha e Foucault; Maria Aparecida de Souza Perrelli (UCDB), em “A ‘ciência’ na visão de alunos indígenas: um estudo visando à construção de contextos de relações interculturais” traz as reflexões elaboradas a partir da experiência vivida como professora de ciências naturais em um curso de formação de professores indígenas kaiowá e guarani. Com o objetivo de “conhecer as concepções de ciências dos alunos”, Perrelli realiza uma pesquisa cujos dados produzidos sugerem a necessidade de releituras do conceito de ciência “que, de uma parte, contemplem uma visão de ciência mais abrangente e inclusiva […] e, de outra parte, deverá buscar a ‘ciência do índio’, sua epistemologia, metodologias, linguagens, impactos sociais, os processos históricos que a tornou, aos olhos do ocidente, um saber subalterno, um não-saber, um não-conhecimento, uma não-ciência”.

Ao organizar o Dossiê Educação e Interculturalidade: mediações conceituais e empíricas, a Linha de Pesquisa Diversidade Cultural e Educação Indígena espera contribuir no sentido de provocar discussões que atentem para a complexidade de ­questões quase sempre abordadas teórica e empiricamente de forma periférica, na lógica da monocultura e das polaridades que ocultam o potencial da polissemia, da ambivalência, das múltiplas possibilidades de construção/produção de sentidos e, com isso, sugerir alternativas através de incessante processo de construção, sempre aberto e, dessa forma, consolidar espaços educativos em uma perspectiva intercultural.

 

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Publicado

2013-06-06

Como Citar

Nascimento, A. C., & Brand, A. J. (2013). Apresentação. Série-Estudos - Periódico Do Programa De Pós-Graduação Em Educação Da UCDB, (27). https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v0i27.185

Edição

Seção

Dossiê